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Alejandro de la Fuente

Combate ao racismo exige superação do isolamento de disciplinas

Discriminação racial tem capilaridade que não se restringe a campos específicos do saber

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Alejandro de la Fuente

Diretor do Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas da Universidade Harvard e professor visitante da Fulbright na UFBA (Universidade Federal da Bahia)

[RESUMO] Apesar de o racismo estratificar a sociedade brasileira, o fenômeno continua sendo estudado a partir de disciplinas isoladas, que não permitem ultrapassar fragmentos da vida social e cultural. Para enfrentar essa situação, autor defende a criação de programas acadêmicos multidisciplinares, o que implica uma transformação mais ampla do sistema universitário.

Nas últimas semanas, temos lido nesta Folha artigos que debatem se o racismo é estrutural ou não no Brasil. Nem o conceito racismo estrutural nem a discussão são novos, já que se relacionam com a velha discussão sobre como o racismo brasileiro se compara com o dos Estados Unidos e o da África do Sul. Esse foi um tema muito debatido por acadêmicos e ativistas durante décadas.

Contudo, agora temos consenso sobre uma questão central: o Brasil é uma sociedade racista. O racismo não é exclusivo da sociedade norte-americana. Como dizem os professores Lia Vainer Schucman e Rafael Mantovani na crítica a Muniz Sodré, "ninguém nega o racismo".

Protesto do movimento negro em Brasília em 2021 - Sergio Lima - 13.mai.21/AFP

Além disso, ninguém nega que o racismo, estrutural ou não, tem um impacto devastador na vida das pessoas racializadas como "negras" e explica seu menor acesso às fontes de riqueza, ao mercado do trabalho, à educação, à saúde, à recreação e às posições gerenciais e de poder.

O racismo —ou o que Muniz Sodré chama de forma social escravista— também reproduz a crença de que as "raças" existem e que estão associadas a diversas qualidades e habilidades. Essa crença é um elemento central da cultura brasileira e permeia as relações interpessoais e as ações institucionais.

Embora o racismo literalmente seja responsável por colorir as relações sociais, a linguagem e as instituições de forma abrangente e integrada, continuamos o estudando a partir de disciplinas isoladas, que se concentram em parcelas específicas da vida social e cultural, ignorando as outras.

Os sociólogos estudam as desigualdades. Os historiadores, a escravidão, a abolição e as lutas das pessoas e comunidades afrodescendentes por liberdade e cidadania. Os cientistas políticos estudam as conexões entre a raça, os processos eleitorais e a composição racial dos órgãos de poder. Os linguistas e especialistas em comunicação, a linguagem como uma estrutura de poder e as narrativas que sustentam a raça como categoria de diferença. Os arquitetos e urbanistas estudam as dimensões espaciais do racismo, os ambientalistas, o racismo ambiental, os historiadores da arte, as visualidades.

Todas essas disciplinas e muitas outras produzem uma multidão de pesquisas valiosas, mas raramente conversam entre si. Estudamos muito bem os fragmentos e as consequências, mas não temos estruturas acadêmicas e programas para estudar e combater o racismo como um sistema complexo de ações, crenças, instituições, representações e políticas que produzem e reproduzem a estratificação racial.

Venho encontrando essa fragmentação durante minha estadia no Brasil, como professor visitante da Fulbright na UFBA (Universidade Federal da Bahia). Tenho tido encontros com historiadores, grupos de pesquisa de arquitetos e urbanistas, pesquisadores de racismo e comunicação social, sociólogos que estudam as desigualdades, juristas e cientistas políticos, museógrafos e estudiosos de objetos artísticos e religiosos das comunidades afro-brasileiras.

Todos estudam um problema comum, mas têm pouco contato entre si, ainda que trabalhem na mesma instituição ou na mesma cidade. É por isso que precisamos de espaços e programas acadêmicos multidisciplinares para estudar o racismo. Precisamos de um campo de estudos afro-latino-americanos ou, no caso do Brasil, de um campo de estudos afro-brasileiros.

Desde a criação do Alari (Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas) da Universidade Harvard, em 2013, tenho visto o que acontece nesses espaços multidisciplinares. Os pesquisadores, especialmente aqueles que buscam influenciar as políticas públicas, constatam que o racismo tem uma capilaridade que não pode ser reduzida aos confins de uma só disciplina.

Uma pesquisa sobre racismo ambiental precisa, por exemplo, da participação dos historiadores, que estudam a origem e o desenvolvimento das comunidades afetadas pelas mudanças climáticas; dos sociólogos, que estudam as desigualdades regionais; dos economistas, que pesquisam os sistemas produtivos das regiões; dos geógrafos, que estudam como as próprias "regiões" são constituídas; dos estudiosos de feminismo e gênero, que analisam como esses processos têm efeitos diferentes segundo o gênero.

No imaginário social, essas regiões frequentemente figuram como áreas incivilizadas, figurações que são estudadas por literatos, historiadores da arte, estudiosos das religiões e especialistas em comunicação social. Qualquer política pública que não leve em conta essa integralidade terá uma efetividade limitada.

Instituições como o Alari também funcionam como motores de inclusão social, porque as pesquisadoras e os pesquisadores jovens sentem nesses espaços que seu trabalho não só é apoiado e valorizado como fazem parte de um movimento intelectual mais geral, de um campo de estudo em crescimento. Além disso, os pesquisadores criam redes que, como qualquer acadêmico sabe, são fundamentais para nossas carreiras. Esses são de empoderamento e de validação.

A demanda é enorme, já que a produção de conhecimentos sobre o racismo também é. Uma das atividades anuais mais importantes do Alari, o Seminário de Teses de Doutorado de Estudos Afro-Latino-Americanos Mark Claster Mamolem, é um bom exemplo. O seminário tenta identificar as melhores teses doutorais sobre racismo e estratificação racial na América Latina, qualquer que seja o lugar de realização dos estudos.

Os estudantes podem enviar seus materiais em inglês, espanhol ou português. Desde sua criação, em 2016, o seminário já recebeu 1.040 solicitações de participação. Estamos falando de mais de mil teses doutorais sobre escravidão e racismo na América Latina, produzidas nas mais diversas disciplinas. Sessenta por cento das solicitações vêm do Brasil; as mulheres e os afrodescendentes representam quase dois terços do total.

Precisamos responder a essa demanda e a essas necessidades na academia. Com apoio da Fundação Ford, o Alari criou um Consórcio Universitário de Estudos Afro-Latino-Americanos com grupos de pesquisa no México, Colômbia, Argentina, Brasil e os Estados Unidos para desenvolver e institucionalizar o campo de estudos.

Alguns grupos de pesquisa brasileiros, como o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa do Iesp-Uerj) e o Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), já são multidisciplinares, mas com um predomínio claro das ciências sociais. O Afro-Cebrap foi criado pela socióloga Márcia Lima, da USP, e faz parte do consórcio.

Outros grupos multidisciplinares estão surgindo. Na UFBA, um grupo de colegas está tentando estruturar um programa de estudos afro-brasileiros e afro-latino-americanos a partir do Centro de Estudos Africanos e Orientais, que publica o jornal Afro-Asia. Na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), um grupo de colegas do programa de pós-graduação em letras vêm lançando o Leafro (Grupo de Pesquisa Linguagens e Estudos Afro-Latino-Americanos).

São passos institucionais importantes, mas o combate ao racismo, seja institucional ou não, precisa de uma transformação mais sistemática e geral do sistema universitário.

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